terça-feira, 10 de agosto de 2021

Amor tricotado

 

 

A música tocava triste, vinha de dentro, do casebre

Balada do sofrimento continuo

O velho deitado, enterrado na roupa negra da enxerga

Rangendo os ossos sem a lubrificação natural

O amor

A velha sentada no degrau, à porta, fazia tricô

Tricotava umas meias

Meias de lã

Seriam para o velho talvez

O calor do amor tricotado pelas grossas mãos enrugadas

Um olhar vazio, ausente

Fazer mais por instinto que por clareza

A pouca visão não vai além da agulha

Dos fios enrolados nos dedos

E as meias vão crescendo para poderem ser usadas

Nos pés do velho quem sabe

Que já não sai da cama mas vai agora ser calçado

Quem todo o tempo andou descalço

Umas meias de lã, o calor do amor tricotado

Para quem guerreou na vida com alfaias agrícolas

Sempre descalço

Lançando o grão à terra

Nos sulcos por ele feitos

Marcados hoje no rosto tisnado

Onde se pode ler a saudade de um sorriso

De um abraço amigo

Só a velha o acode na dor escondida sob as mantas

O degrau da porta, a sombra da tarde

Umas meias para quem nunca viveu por inteiro

Que lavrou a terra derrapando nas curvas do tempo

Entrando em despiste na vida

Sempre descalço

Umas meias para os pés de quem se levantava com a aurora

E que hoje já não vê o sol

Não vislumbra os dias passados nem os que virão

Mas calçará o amor tricotado por uma companheira velha

Com pouca vista mas grande coração

Testemunhado pelos fios e pela agulha

E pela sombra que faz no degrau da porta

E a música toca triste

A balada do desespero entranhada nos ossos.

 

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