quinta-feira, 30 de março de 2023

Estações

 

 

Despertei com chuva, ouvindo notícias de Inverno.

Gentes fustigadas por temporais destruidores.

Assoladas por ventanias de miséria.

Lama de fome entrando pelas brechas das paredes abaladas.

Ideais voando nos talhados arrancados pelo forte vento.

Corpos mirrados pela trovoada que cruza os céus, último bastião da esperança.

Quando surgirá Abril? Para quando a Primavera?

Até quando soprará o autoritário ciclone?

Quanto tempo durará a tempestade do cifrão?

Despertei com chuva desejando uma aurora solarenga, que me faça regressar a um verão mesmo fingido, para voltar à liberdade hipócrita que me concedem, se…

E depois virá o tempo outonal, das folhas caídas, dos frutos maduros, colhidos para as mesas dos ricos, donos deste pobre pomar.

“A desgraça de uma nação pobre é que em vez de produzir riqueza produz ricos” (Mia Couto).

Por isso o sol não brilha para todos, e continua o Inverno chuvoso, para quem precisa de calor nos estômagos vazios, para quem necessita de bonança numa vida sem teto.

“A ameaça da morte pela fome, lança o homem contra o homem,

e os cidadãos contra os seus governantes” (Johnsom).

Para quando a primavera?

Hoje ainda despertei com chuva, e o céu carregado de negro não agoira tempos melhores.

Quem dera uma manhã de nevoeiro, em que surgisse por entre a bruma, não o histórico Sebastião, mas outro Rei, o farol dissipador.

O amor em forma de cruz, o raio fulminante do exemplo de serviço.

Até podia despertar de novo com chuva.

Até podia ser Inverno.

Mas teria o calor da esperança, na espera do sol do verdadeiro verão.

 

sexta-feira, 17 de março de 2023

Há quanto tempo

 

 

Há quanto tempo não tens tempo?

Para os filhos, o marido, a esposa

Há quanto tempo não tens tempo?

Para parar

Para pensar em tudo quanto precisas ser?

Há quanto tempo nem te lembras da vida?

A não ser quando a morte te roça

Há quanto tempo não rezas?

Preocupado com o fechar das igrejas?

Tu és a Igreja

A tua casa pode ser

Há quanto tempo não lês?

O outro. O amigo ou o vizinho

Todos somos livros, abertos ou fechados

Mas todos somos livros que se podem ler

Neste tempo “imposto” pela racionalidade

Vais aproveitá-lo com qualidade?

 

«Somos frágeis. Os ossos estalam, cedem.

A alma foi aprisionada pelo corpo ou o corpo pela alma, tanto faz.

A nossa casa é o mundo.

Sujo está o mundo, e nossa fragilidade exposta.»

(do livro: A Noite Imóvel, de Luís Quintais)

 

As caras de mal com o mundo

 

 

Há caras que metem dó, metem nojo

Essas não se recomendam de facto

Sisudas, casmurras, antipáticas

Sempre de mal com o mundo

E por vezes apetecia parti-las

Há outras caras que bem confecionadas

É um regalo para os olhos

E despertam o apetite

São as caras de “bacalhau”

Um destes dias à hora de almoço

Vi a sua apresentação fiquei maravilhado

“Caras de bacalhau” com grão e batata

Para mim uma só batata bastava

Partida a maio ficava com duas metades

E a batata pode partir-se sem ser considerado violência

Já as caras sisudas e antipáticas

Não me é aconselhado parti-las.

Vou ter de as aguentar inteiras

Embora haja caras-metades.

Às outras, as casmurras

Vou ter de condescender com elas

Faz parte do tempo da Quaresma.