quinta-feira, 29 de novembro de 2012

"Recordações"

 Uma infância conturbada, onde o direito de ser criança, quase não existia.
As dificuldades para viver sentem-se no que se vê.
O trabalhar árduo e contínuo do pai, o acompanhamento zeloso e constante da mãe.
As refeições dos muitos filhos à volta dum banco, sentados noutros mais pequenos.
O caldo de pão pela manhã, que colmata a falta do leite.
O amontoar da lenha para o forno para a feitura do pão.
O acompanhar os mais velhos nos trabalhos caseiros.
O fazer dos recados com o intuito do ganho de responsabilidade.
A lareira de tijolos. A candeia a petróleo sobre a padeeira do forno.
A ronda da mãe antes de dormir, com o candeeiro na mão.
As brigas, o espaço por baixo da cozinha, refúgio perfeito em mente de criança, para cenário de guerra.
A “doutrina” infantil às quintas de manhã.
O correr e jogar à bola descalço.
O rebentar dos dedos, o curativo para parar o sangue com açúcar e teia de aranha.
A escola, os professores, o aparo e a tinta para escrever.
Os livros escolares, estimados mas muito usados, com as marcas dos dedos dos irmãos mais velhos.
A sapatada do pai, o socorro da mãe que melhor compreende e perdoa.
A alegria das festas, a ceia de Natal.
A regueifa da Páscoa, a visita nas casas do “compasso”.
Os aniversários dos filhos com jantar melhorado.
Uma infância menos feliz? Se calhar.
Mas ainda hoje recordada como escola de vida.

sábado, 24 de novembro de 2012

Passo a passo

Nem reparei no que calçava
Mas não devia estar descalço
Pelo conforto sentido dir-me-ia bem calçado
Calcorreei toda a espécie de piso
Entrei em terreno lamacento
Caminhos pedregosos
Abeirei-me de precipícios
Cambaleante e enfraquecido
Escorregando por vezes
Mas nunca caído.
Por alguns dado como perdido
Sempre me encontrei
No abraço forte do Pai
Sempre me senti amparado
Para alguns caso perdido
Sempre presente para outros.
E o caminho faz-se
Se correr me não é permitido
Avanço com lento passo
Mas avanço e recupero as forças.
Vencendo cepticismos
Perscrutando novas estradas continuo
Nem reparei no que calçava
Mas não devia estar descalço.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

A fome campeia

A fome saiu à rua, foi andando de mansinho sorrateiramente à procura de guarida no intuito de se instalar. Não avisa quando vem, mas quando aparece é para ficar e, dificilmente é desalojada.
Não entra em todas as casas porque algumas já se precaveram contra essa praga.
Preveniram-se a tempo com altas grades de protecção, com sofisticados sistemas de alarme e câmaras de vigilância, e assim a dita não consegue entrar.
Mas a fome não desiste, continua imperturbável o seu caminho e entra em zonas mais fragilizadas onde as ruas são tugúrios e as casas são abarracadas.
Aí não há resistência de qualquer espécie e ela nem precisa que lhe abram, qualquer brecha das muitas que tem a construção permite a sua penetração.
E há muitas casas que estão em risco de desmoronar por tantas fendas feitas na tosca construção.
É a”fenda” do desemprego, a “fenda” da baixa escolaridade.
A “fenda” dos baixos salários, a “fenda” da velhice e da doença, a “fenda” da marginalidade e da marginalização, a “fenda” da exclusão social, a “fenda” da falta de capacidade intelectual e tantas outras que fazem das paredes um buraco só.
Mas a fome continua a avançar e entra noutros domínios.
Ela é companhia assídua de jovens casais que optam por conviver com ela para não faltarem a outros compromissos.
É pendura e anda sempre à boleia.
Acompanha os seus “portadores” para a escola, para o trabalho, para as ruas e becos, e volta de novo para as casas onde mora de favor, e aí é muito mais sentida e notada.
A fome está no insucesso escolar, está nas desavenças familiares, mas, também vai ao futebol, vai aos espectáculos de Rock, porque como diz o povo” anda muita fome encoberta”.
Mas como nem só de pão vive o homem e do outro alimento também poucos o procuram, cada vez temos mais fome a descoberto, e ela campeia em muitos lugares que se pensavam interditados.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

A luta continua

Na tempestade não perdi o caminho
Em dias de temporal continuo
Sempre me aguentei
Sem alforge nem sandálias
Mas de firme esperança nunca descalço.
Empunhando o bastão da fé
As ravinas são vales frondosos
Seguro no cajado do amor
O deserto se torna aconchego.
Viver feliz mesmo sofrendo
Por nunca me saber só
É loucura saudável nesta viagem
 Que me permite viajar sem capa
A capa do coitadinho
Do doente estigmatizado.
Esse traje nunca vesti
Por muito oferecido que fosse.
Nunca escondi o meu rosto
No jejum sempre sorri
Sozinho nunca vencerei a guerra
Com ajuda esta batalha ganhei
Para outras que forem surgindo
Estamos aí.
E como disse meses atrás
Não… ainda não morri.

sábado, 3 de novembro de 2012

Um povo "refundido"

“Mas quem é o povo para saber o que o povo quer?”
Esta é uma frase publicitária, em que tomei a liberdade de trocar a palavra consumidor, por povo, sabendo que o povo nesta fase é mais consumido que consumidor.
Mas quem é o povo para saber o que o povo quer?
Quem é o povo?
Quando os senhores da tribuna cospem a palavra povo a quem se referem?
Se calhar aos pobres, aos desempregados, aqueles que trabalham, mas só servem para pagar impostos, porque eles os senhores da tribuna, não devem pertencer a essa ralé, pois não os vejo a passar os sacrifícios que o pobre “povo” vai amargando.
Quando frequentei o ensino nos anos sessenta, aprendi a divisão da sociedade em classes:
O clero, a nobreza e o povo.
Como será que ela hoje é dividida?
Fica a pergunta.
 Porque se eu tivesse a ousadia de responder como vejo esta divisão, iria por certo dividir opiniões, entre os que me chamariam de mal educado, e os que me achariam louco.
Por falar em loucura, haverá alguém do povo que me saiba elucidar sobre a palavra refundação?
O dicionário de português nada me diz, que será refundação?
Será alguma palavra troikana?
Quando mais novo, na casa de meus pais, a água para consumo era proveniente de um poço que de quando em quando era refundado para dar mais água.
Será que esta “refundação” falada pelos senhores da tribuna, é para afundar mais o país, afundar mais o povo, ou meter mais água?
“Mas quem é o povo para saber o que o povo quer?”