domingo, 9 de junho de 2013

Amor tricotado

A música tocava triste, vinha de dentro, do casebre
Balada do sofrimento continuo
O velho deitado, enterrado na roupa negra da enxerga
Rangendo os ossos sem a lubrificação natural
O amor
A velha sentada no degrau à porta, fazia tricô
Tricotava umas meias
Meias de lã
Seriam para o velho talvez
O calor do amor tricotado pelas grossas mãos enrugadas
Um olhar vazio, ausente
Fazer mais por instinto que por clareza
A pouca visão não vai além da agulha
Dos fios enrolados nos dedos
E as meias vão crescendo para poderem ser usadas
Nos pés do velho quem sabe
Que já não sai da cama mas vai agora ser calçado
Quem todo o tempo andou descalço
Umas meias de lã, o calor do amor tricotado
Para quem guerreou na vida com alfaias agrícolas
Lançando o grão à terra
Nos sulcos por ele feitos
Marcados hoje no rosto tisnado
Onde se pode ler a saudade de um sorriso
De um abraço amigo
Só a velha o acode na dor escondida sob as mantas
O degrau da porta, a sombra da tarde
Umas meias para quem nunca viveu por inteiro
Que lavrou a terra derrapando nas curvas do tempo
Entrando em despiste na vida
Umas meias para os pés de quem se levantava com a aurora
E que hoje já não vê o sol
Não vislumbra os dias passados nem os que virão
Mas calçará o amor tricotado por uma companheira velha
Com pouca vista mas grande coração
Testemunhado pelos fios e pela agulha
E pela sombra que faz no degrau da porta
E a música toca triste
A balada do desespero entranhada nos ossos.

1 comentário:

  1. Palavras para quê?! Uma das descrições de amor mais bonitas que já li, vi ou ouvi.
    "Porque há-de chegar o dia em que a única coisa que poderemos fazer os dois será conversar. E isso é amor..."
    Grande abraço.
    Fábio Alves

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