domingo, 25 de outubro de 2020

Gente carunchosa.

 

Nos anos que tenho de trabalho, sempre lidando com madeiras e com móveis, o caruncho é algo que conheço bem, e só serve para sujar, mas não é nada que uma vassoura não consiga solucionar. 

Pior, é o caruncho que se deposita no interior do ser humano, onde a vassoura não entra.

O escritor espanhol Cervantes diz: “O caruncho de todas as virtudes e raiz de infinitos males é a inveja". Vício que entre nós dá mais trabalho a compreender. 

Ainda que tenha que se aceitar que está mais entranhado em nós do que julgamos e mais espalhado do que gostaríamos, pois como diz o ditado, se os invejosos voassem nunca chegaríamos a ver o sol”.

Como é lógico não me refiro a essa admiração a que às vezes se chama inveja, mas que é muito distinta desse vício, que os dicionários definem como “tristeza ou pesar pelo bem alheio”.

E se a emulação, o desejo de ser como os outros, o sonho de que a lotaria que calhou ao vizinho calhe também a nós são coisas lógicas e perfeitamente compreensíveis, o que já não tem sentido é que essa inveja destrua a muitos, por verem a alegria dos outros.

Efectivamente, é um vício, a inveja, que destrói muito mais o invejoso do que o invejado. O invejado se não lhe der muita importância não lhe fará qualquer mal. 

Mas ao invejoso não. Aquele que é invejoso verdadeiramente nunca será feliz, nunca poderá desfrutar do que tem só em sonhar com o que os outros têm. 

A inveja é um caruncho para a alma. Além disso, curiosamente, a inveja consegue o contrário do que pretende: não sacia aquele que a tem, e é uma secreta homenagem àquele a quem se dirige, porque o invejoso está a proclamar as virtudes ou a sorte do invejado. 

A inveja só dirige os seus tiros para aquilo que lhe parece grande. A inveja nasce forçosamente de um coração distorcido, supõe uma profunda maldade de espírito, e só um terramoto na alma a pode curar. 

A minha vida é minha, e eu não tenho que realizar a vida de ninguém, só a minha.

E como o importante é o que se é, e não o que se tem, quem é mais do que quê? 

Talvez seja mais rico, mais esperto, mais bonito, mas nunca essas coisas são a minha vida. Nenhuma delas é imprescindível para ser feliz. Rigorosamente, contra a inveja basta a sensatez, o realismo, o reconhecimento de que a felicidade consiste no máximo desenvolvimento das capacidades da nossa alma e da nossa vida, não da conquista da vida do vizinho.

Mas o que mais asco me dá é a inveja que se pode ter de quem nada mais faz do que lutar por viver com a mínima dignidade.

 

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